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NOTA DE REPÚDIO AO PROJETO DE LEI MUNICIPAL QUE INSTITUI PROGRAMA MUNICIPAL DE INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA EM CAMPO GRANDE/MS

O Conselho Regional de Psicologia da 14ª Região – Mato Grosso do Sul manifesta seu veemente repúdio à aprovação, em votação simbólica e única, pela Câmara Municipal de Campo Grande do Projeto de Lei, de autoria dos vereadores Rafael Tavares e Fábio Rocha, que institui o “Programa Municipal de Atendimento, Recuperação e Encaminhamento Voluntário e Involuntário de Pessoas em Situação de Dependência Química”, no dia 24 de abril de 2025. 

A referida legislação representa um grave retrocesso nas políticas públicas de saúde mental, pois viola diversas legislações nacionais e internacionais: a Constituição Federal; os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira, da Luta Antimanicomial; as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS); a Política Nacional sobre Drogas; e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Ao prever a internação compulsória como principal estratégia de tratamento para pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, o projeto desconsidera os avanços conquistados ao longo de décadas de luta em prol de um modelo de cuidado baseado na liberdade, na dignidade e na autonomia das pessoas. Também desconsidera evidências científicas que demonstram que o modelo de internação involuntária apresenta baixa eficácia no tratamento de pessoas que convivem com transtornos por uso abusivo de substâncias psicoativas, além de gerar danos psicológicos iatrogênicos.

A Reforma Psiquiátrica, instituída pela Lei nº 10.216/2001, defende o fim do modelo hospitalocêntrico e a valorização do cuidado em liberdade e inserção social no território. A legislação aprovada em Campo Grande ignora esses fundamentos ao institucionalizar uma prática que, historicamente, esteve associada à violação de direitos humanos, preconceito, exclusão social e silenciamento das pessoas em sofrimento psíquico.

Além disso, a frequente menção do PL à presença de agentes de segurança pública reforça estereótipos de criminalidade e a ideologia manicomial de que pessoas em sofrimento psíquico são perigosas, ferindo direitos humanos e tratando a questão do uso de substâncias psicoativas como da ordem da segurança pública, sendo que esta é uma problemática de saúde pública. 

A medida contraria, ainda, orientações técnicas e éticas do Sistema Conselhos de Psicologia, que reafirma, por meio de suas resoluções e notas técnicas, o compromisso da Psicologia com a promoção de políticas públicas antimanicomiais e com práticas de cuidado que reconheçam a subjetividade, a escuta qualificada e a redução de danos como estratégia de cuidado. A imposição de internações compulsórias, especialmente em um contexto que carece de ampla rede de serviços substitutivos, contribui para o reforço de práticas higienistas, estigmatizantes e punitivistas.

A aprovação do PL também enfraquece a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), pilar fundamental da política de saúde mental no SUS. Ao invés de fortalecer os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os consultórios na rua, os serviços residenciais terapêuticos e demais dispositivos de cuidado em liberdade, opta-se por uma resposta autoritária que ignora a complexidade da questão do uso de substâncias e as múltiplas determinantes sociais envolvidas.

A intenção de reclusão forçada fortalece o funcionamento das chamadas comunidades terapêuticas, alvo constante de muitas denúncias por violações de direitos humanos e que frequentemente envolvem isolamento forçado, trabalho compulsório e práticas abusivas, que podem ter efeitos traumáticos, prejudicando ainda mais a saúde mental dos pacientes.

A população em situação de rua e as pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas carecem mesmo é da falta de políticas sociais, de atendimento adequado, de serviços de acolhimento, do investimento em serviços públicos de saúde mental e assistência social. 

Dessa forma, o CRP14/MS reafirma seu posicionamento em defesa da vida, da liberdade e dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. É preciso construir alternativas que, baseadas na escuta, na redução de danos e no cuidado integral, respeitem a autonomia dos sujeitos e os princípios da saúde pública.